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AMÉRICO " O Homem Idoso " Relato duma vivência

Estava sentado em frente da casa, nos degraus de madeira da escada antiga.

Era idoso,entre os 70 e 80 anos , e tinha o olhar fixo num ponto qualquer da rua em frente, com árvores enormes, rigorosamente alinhadas de ambos os lados.

Já caiam algumas folhas amareladas pelo frio da noite que, as começara a arrancar do verde abundante , que ainda tingia as que resistiam aos ares frios que a noite trazia, já anunciando o Inverno.

Era Setembro,o outono chegara.

O sol descia devagar, embora quente, já não tinha a intensidade das semanas anteriores.

Não havia carros na rua , e o olhar triste do homem idoso lá continuava parado,absorto nos seus pensamentos,nas suas recordacões , decerto do tempo que passara tão depressa,nas mudanças que aconteciam tão inesperadas e imprevistas.
A boina não cobria totalmente os cabelos brancos e curtos , nem a face magra marcada pela vida óbviamente de camponês.
Mãos calejadas e braços secos do duro trabalho do campo.
O seu aspecto, embora sombrio era benevolente,embora triste era gentil,embora parado era nobre.

Via-o ali com frequência e nem sabia se seria ou não português, mas o aspecto não enganava,como não enganavam as roupas,como não enganava a boina.
Decidi falar-lhe naquela tarde.

Parei em frente da porta da cerca de madeira, que circundava o espaço, onde a relva verde crescia. Estava cortada e limpa entre as escadas onde o homem se sentava e o passeio de cimento do outro lado da cerca .

"Boa tarde senhor", disse-lhe;

O levantar do rosto quase antes de acabar a frase, refletiu um brilho repentino, que num instante deu vida aos olhos.

Um sorriso cansado que naquele momento , alegrou seu rosto de sulcos profundos, que marcavam a passagem inexorável do tempo, tornavam desnecessária a pergunta que iria seguir-se, mas que, mesmo assim perguntei:

- O senhor é português ?

Respondeu afirmativamente, e na sua voz notava-se a alegria de ter alguém com quem falar,de preencher a tarde vazia e interminável e FALAR. Arrancar a mordaça que a vida lhe implantara,ainda que por instantes.

Perguntei se estava bem,se gostava de estar ali,se gostava do Canadá.

Disse que sim,que estava bem,o problema era estar só,seu filho e nora estavam no trabalho, seus netos na escola e ele ali , estava sózinho, sem nada que fazer o dia inteiro,sem ter com quem falar,todos os vizinhos falavam outras linguas.

Tive pena do homem e decidi ficar a fazer-lhe companhia e a conversar da vida, da sua,e sentir ao mesmo tempo , o drama de quem é arrancado ás suas raizes já na curva descendente da vida,quando a esperança de construir mais coisas já não existe,quando o sentimento de sentir o mundo a girar em seu redor já se perdeu,quando o fim já se torna bem visivel no horizonte e não há forma possivel de o trasnformar ou alterar a sua direcção.

Perguntei-lhe se se lembrava da terra, se ainda lá tinha família ou amigos,se pensava voltar...que tinha deixado na sua aldeia que mais se lembrava.

Respondeu que família nao tinha, sua companheira já partira havia 4 anos,seus amigos quase todos também ... mas que gostaria de voltar, tinha umas saudades imensas de sua horta...e ao falar na horta, os seus olhos brilharam mais,com uma lágrima que se soltou enquanto a voz ficou por momentos presa em palavras que não saíam.

Ficou calado por momentos,vergado pelo peso da emoção que não conseguia esconder,pela lágrima que teimava em não sumir de seus olhos.

Senti seu drama com ele , naquela lágrima furtiva,naquele olhar iluminado pela lembrança , mas ao mesmo tempo toldado pela saudade da terra, sua companheira e sua mãe, seu mundo e sua missão, sua raiz e sua referência.

Disse-me que tinha a horta mais bem cuidada das redondezas, nem uma erva,nem uma pedra se via na terra sempre limpa. Laranjeiras e pessegueiros, pereiras e macieiras sempre davam os melhores frutos de entre todas as da redondeza.

Falava entusiasmado do milho e do feijão,do tomate e das couves, como se cada palavra que dizia fosse mais uma semente que plantasse,mais uma alface que colhesse.Vivia as palavras,alternando nelas a alegria e a tristeza que a lembranças traziam em cada frase e em cada gesto que fazia.

Falou...falou...soltou na minha presençaa os seus pensamentos acumulados,as suas angústias e desejos,as suas lembranças e pesadelos.

Falou-me horrorizado do mato e das silvas que decerto já tomaram conta da terra, da horta sempre tão bem cuidada,do poço que também devia estar cheio de silvas,das árvores que se calhar nunca mais haviam sido podadas e cavadas.

Havia amargura e desespero na sua voz,carinho e inquietação , como se a horta fosse seu ente mais querido neste mundo.

Fiquei a olhar,a escutar, e a sentir o drama deste homem simples que se contentava com tão pouco na vida.Senti a sua tristeza mas também a sua energia.

Fiquei fascinado e maravilhado pela imagem deste homem , que em plena sociedade de consumo,de conforto e de vida fácil,continuava fiel e inalterado na sua essência e nas suas referências.

Também minha voz ficou presa na garganta...em palavras de conforto que nunca dariam a este homem o conforto que precisava...

Vislumbrei também com clareza um drama e um dilema, que todos os dias se repete por quem um dia partiu carregado de sonhos, mas sem a noção do impacto que esse passo viria a ter um dia na sua vida e caminhada e na dos outros à sua volta, do efeito e das consequências.Um drama que todos os dias se repete em todo o mundo, num movimento constante de massas , quantas vezes trágicamente e desumanamente exploradas, e fiquei feliz porque pelo menos isso o homem não sofria.Tinha conforto e carinho,atenção e respeito. Era tratado com dignidade e o cuidado que merecia,situação que nem sempre se verifica nas famílias emigrantes que trazem seus pais para junto de si.Nem todos nós portugueses cuidamos de nossos familiares como devemos...muitos deles são mal cuidados e desprezados em Portugal e nas comunidades emigrantes espalhadas pelo mundo.

Fiquei , não sei quanto tempo, e quando fui embora o senhor ainda tinha coisas por dizer,experiências para dividir. Pediu-me para voltar e conversar com ele. Pediu também desculpa se tinha sido massador.
Respondi que não...que tive imenso prazer em estar ali com ele, e prometi que voltaria.

O Inverno entretanto chegou,a relva ficou coberta de neve branca, e as escadas sempre vazias quando eu lá passava.

Não vi mais o homem idoso...a árvore secando lentamente fora do seu habitat, mas a imagem ficou nas palavras,no olhar,na descrição carinhosa e intensa da sua HORTA.
Ficou também na minha mente e consciência , mais um momento da vida de alguém,que eu adoptei também e transformei num momento meu, numa imagem que decerto não quero viver.

Nao vi mais o homem idoso,mas não o ter visto nada muda, continuam a existir por esse mundo milhares de portugueses idosos, sentados em escadas olhando a vida passar,caindo lentamente sem esperançaa de voltar um dia à terra que os viu nascer.

Triste...a face oculta do emigrante de vivendas bonitas,de carros novos, de grandeza vazia.

Triste, mas real e autêntico,neste mundo de dramas escondidos,de imagens falsas,de realidades perturbadoras, que raramente vêm à superficie.

Não perguntei o nome do senhor...nem precisei...!

Seu nome é decerto o meu... o teu ...o nosso!

AMÉRICO

Comentários

  1. ...histórias da vida real! Muito lindo...

    Abraço carinhoso

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  2. Olá Américo, vim para te desejar uma boa noite e ler alguns dos teus poemas e encontrei este texto...como ainda não o li com atenção, não te vou ainda deixar um comentário sobre ele, mas isso agrada-me porque vai fazer com que eu volte mais tarde...
    BEIJOS
    LIZ

    ResponderEliminar
  3. Quantas vezes um silêncio encobre a dureza de uma vida! Quantas vezes há que estender uma palavra a quem não pode falar e fazer dessa palavra um salva-vidas!!! É assim a vida de muita gente.Infelizmente! **

    ResponderEliminar
  4. OLA, fiquei contente com a tua visita.Meu endereço para falar ou mandar e-mail : betaeira@msn.com.
    BJS
    LIZ

    ResponderEliminar
  5. OLA, bom fim de semana para ti:)BJS
    LIZ

    ResponderEliminar
  6. Excelente texto. Um fragmento da vida real, tantas vezes incompreensível...

    Um abraço

    ResponderEliminar
  7. Um história feita de momentos plenamente vividos e narrada com um estilo sugestivo que nos faz passar diante dos olhos a narrativa como se fosse um filme...Linda e poética, intensa e delicada..
    Parabéns! Continua..**
    meg

    ResponderEliminar
  8. É bem verdade que na Vida há sempre uma 1ª. vez para tudo ...nunca tinha vindo a este blog...tou a gostar :)
    Ao Américo rendo a minha homenagem pela fluidez dos seus textos, sensibilidade e "nitidez das imagens" ...
    Adorei!
    Beijo
    Rio-Azul

    ResponderEliminar

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